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    O Judiciário da cor branca que usa toga preta: A invisibilidade da mulher negra nos órgãos de poder brasileiros

    Permito-me fugir das técnicas jurídicas para trazer um breve ponto de reflexão sobre a importância da diversidade na composição dos órgãos de cúpula do Poder Judiciário

    Caminhamos para 75 anos que foi proclamada, pela Assembleia Geral das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Esse documento de marco histórico inspirou a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racional (1965) e a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra Mulheres (1979). 

    Apesar de a Declaração Universal dos Direitos Humanos haver inspirado diversas normas voltadas à afirmação dos direitos à liberdade, à igualdade e à própria proteção do indivíduo e da sociedade, prendo-me, nesse momento, para essas duas convenções, que buscam eliminar toda e qualquer forma de discriminação racial e de gênero. 

    É interessante observar ainda que, apesar de datar de 1979, a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher somente foi objeto de promulgação, pelo Congresso Nacional, no ano de 2002, ou seja, mais de 23 anos após a sua aprovação, haja vista que o Brasil, apesar de signatário, estabeleceu ressalvas ao seu conteúdo. 

    O retardo na promulgação dessa importante norma internacional demonstra que as questões voltadas à igualdade e à diversidade ainda são recentes em nossa sociedade. 

    Chamo a atenção para o fato de que, nessa nossa conversa, estamos abordando sobre a quebra da discriminação institucional, o que nos leva a tratar da igualdade, em que devemos elevar o nosso pensamento para o conceito de povo, e não apenas de população. Pensarmos dessa forma é extremamente importante porque a concepção de população nos direciona apenas para o elemento numérico. 

    No entanto, quando discursamos sobre isso, direcionamos o nosso pensamento para o elemento humano, politizado e capaz de pensar, com indiscutível concepção de igualdade, haja vista que se refere ao alicerce de uma estrutura estatal organizada.  A discriminação se contrapõe diretamente ao princípio da igualdade. Quando queremos saber se, ainda hoje, apesar do acervo normativo existente, há formas de discriminação pelo sexo ou raça, basta analisarmos, no campo das oportunidades, a participação de homens e mulheres dentro das diversas raças. 

    A discriminação é combatida por dois grandes eixos: da diversidade e da inclusão. A diversidade pressupõe a oportunidade igual para os iguais, independentemente de sexo, raça, ideologias, religiões etc. Já a inclusão exige o estabelecimento de desigualdades para aqueles que são desiguais. São raciocínios diferentes, pois, na inclusão, buscamos corrigir as diferenças e, na diversidade, procuramos eliminá-las. 

    Como já destacado, nossa conversa está voltada ao princípio da igualdade a partir da diversidade. Esse ponto é extremamente importante para que possamos estabelecer que todos somos iguais, de um modo que não se admite o traço de diferenças. 

    Os questionamentos que faço hoje são simples e partem da obrigatoriedade de observância de duas normas internacionais: temos igualdade de direitos e oportunidades entre homens e mulheres? Temos igualdade de direitos e oportunidades independentemente da raça? Em especial, as mulheres negras, no Brasil, têm igualdade de direitos e oportunidades? A resposta a esses questionamentos é automática e decorre de uma simples observação dos números, que saltam todos os dias aos nossos olhos e que os agentes políticos se negam a enxergar. 

    Devemos lembrar, inicialmente, que, de acordo com o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), um total de 56% da população brasileira é composta de negros (IBGE, 2022). Apesar de eles representarem a maior parcela da população, há dados que evidenciam a quebra do princípio da igualdade. Como podemos falar em igualdade quando o número de cidadãos que vivem abaixo da linha da pobreza é composto de 71% de negros contra 27% de brancos? Como falarmos em igualdade de oportunidades quando o número de analfabetos negros é quase o dobro daquele registrado entre brancos? 

    Vivemos em um país onde a atividade da agroindústria constitui um dos pilares da economia e, de acordo com o Censo Agro 2017, apenas 1,6% dos proprietários de grandes estabelecimentos agropecuários são negros. Ademais, observamos ainda uma taxa de mortalidade de 11,5 mortes a cada grupo de 100 mil habitantes brancos, enquanto que a taxa de mortalidade de pessoas negras é de 21,9 mortes por 100 mil habitantes.

    Além disso, dos dados levantados, um me chamou a atenção: no curso de Medicina, apenas 3,2% dos alunos são negros, conforme o relatório emitido pelo Conselho Federal de Medicina (2020). Essas informações são apenas exemplificativos e se desdobram para diversos outros campos. Basta observarmos que, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2021, 71% das mulheres vítimas de homicídio eram negras. 

    Esses mesmos dados se confirmam quando analisamos a participação política e institucional nos órgãos de poder no Brasil. Basta observar que o único presidente da República negro que o Brasil já teve foi Nilo Peçanha, no ano de 1909, e, ainda assim, há divergências se ele era negro ou pardo. 

    No campo legislativo federal, a representação de negros é de apenas 24%, enquanto a presença feminina é ainda menor, tendo em vista que, na Câmara dos Deputados, apenas 17,7% dos cargos são ocupados por mulheres e, no Senado, essa proporção é estimada em 16%. 

    No Congresso Nacional, quando se analisa os números sob a ótica da representatividade de mulheres negras, o tratamento discriminatório é ainda mais evidente, chegando-se ao ponto de termos apenas 2% de mulheres negras nesse contexto.  Diante disso, questiono: quantas mulheres negras o Brasil já teve no Supremo Tribunal Federal (STF)? Qual foi a participação da mulher negra no Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou no Tribunal Superior do Trabalho (TST)? Quantas desembargadoras ou juízas negras temos atualmente?

    Partindo desses questionamentos e da busca por respondê-los, percebemos que a situação do Poder Judiciário é ainda mais grave, pois, em 2021, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou a Pesquisa sobre Negros e Negras no Poder Judiciário, que foi feita a partir do Censo do Poder Judiciário e do Perfil Sociodemográfico dos Magistrados (2021). O resultado desse estudo apontou que, retirando aqueles que não responderam, apenas 1,2% dos magistrados se identificaram como negros. 

    A pesquisa apontou que, dentro do grupo de desembargadores do sexo feminino, apenas 12% se identificaram como negras, sendo que, no grupo de juízas titulares, apenas 11% se reconheceram como tal, evidenciando que mais de 87% dos cargos eram ocupados por mulheres brancas e os demais por outros segmentos raciais. 

    Os dados acima destacados são colocados em pauta apenas para demonstrar que, atualmente, passados quase 75 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, vivemos em um mundo de exclusão decorrente do sexo e da cor, em que a mulher negra ocupa um espaço quase que insignificante nos órgãos de poder. 

    Diante do exposto, surge a reflexão sobre qual é o efeito dessa realidade acerca da perspectiva de um povo, cuja resposta deve partir da ilação de que a construção da diversidade passa pela presença de ambientes plurais. Essa pluralidade é própria e ínsita ao Estado democrático de direito e, ao torná-la forte, fortalecemos também a democracia. 

    A diversidade é uma situação social necessária e cheia de riqueza. É saber e compreender o direito de ser e de viver de forma diferente. É sinônimo de pluralidade cultural e permite o entendimento das necessidades sociais e a construção de políticas públicas abrangentes. 

    No âmbito do Poder Judiciário, a diversidade também é imperativa. Não há dúvidas de que o juiz tem que ser um agente estatal imparcial, mas também resta claro de que o julgamento vem envolvido de uma carga decorrente de todo o histórico de vida do magistrado, em que ele expressa suas experiências e concepções ideológicas e jurídicas. 

    Essa necessidade de diversidade ganha maiores proporções quando consideramos os julgamentos colegiados, como é o caso do STF. As decisões da Suprema Corte não representam o pensamento de um único magistrado, mas de um grupo de 11 ministros, cada um com a sua história de vida, com a sua formação técnica e com as suas concepções ideológicas. 

    Essa diversidade constitui fator de legitimidade da própria instituição de poder. É impossível não referenciar, nesse aspecto, Ruth Bader Ginsburg, segunda juíza a ocupar uma cadeira na Suprema Corte dos Estados Unidos. Como defensora da igualdade de gênero, ela teve marcante participação em importantes julgamentos, como nas questões afetas ao aborto e à discriminação de gênero. Ginsburg evidenciou, por sua atuação institucional, que a diversidade constitui um fator de legitimidade da atuação estatal. 

    Essa realidade, voltada à legitimidade estatal, como decorrência natural da diversidade, não é verificada no âmbito dos órgãos de poder do Estado brasileiro. Hoje, o STF é composto de 11 ministros (já considerando a posse do ministro Cristiano Zanin, em 3 de agosto de 2023), sendo que, dentro desse grupo, apenas duas são mulheres. Ademais, não há registros de participação de uma mulher negra na história do STF. 

    Esse mesmo cenário se reproduz no STJ, em que, dos 33 ministros, apenas 6 são mulheres e, dentre elas, não há sequer uma mulher negra. Por fim, no âmbito do TST, dos atuais 26 ministros, apenas 7 são mulheres e, do mesmo modo, nenhuma negra. 

    Toda a reflexão trazida até agora diz respeito à importância da diversidade para o fortalecimento da democracia. 

    No dia 25 de julho, comemoramos o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, instituído pela Lei n.º 12.987, de 2 de junho de 2014. Tereza de Benguela foi uma líder quilombola, que inspirou e inspira milhares de mulheres a lutarem pela liberdade e pela igualdade de direitos e condições, demonstrando a capacidade da mulher negra sob as óticas política, econômica e administrativa. 

    Não tenho dúvidas de que a presença de uma mulher negra no STF constitui um fator de afirmação da diversidade, além de trazer um efeito social de pertencimento, evidenciando que, apesar das dificuldades ainda hoje existentes, o acesso aos órgãos de poder não está restrito ao sexo ou à raça. 

    Não se trata de inclusão, uma vez que exigir a presença de uma mulher negra, no STF, não representa um tratamento diferenciado. Muito pelo contrário, termos a possibilidade da presença de uma mulher negra na Suprema Corte é sinônimo de igualdade e diversidade. 

    A diversidade sempre foi e sempre será um fator de legitimidade. 

    Adenir Alves da Silva Carruesco é desembargadora do Tribunal Regional do Trabalho de Mato Grosso

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